#37 - “UM RECADO PARA BABY BLUES”¹
POR: Isaac Ronaltti
Qual o melhor nome para classificar o 'não visto', o 'não ouvido', aquilo que passou de maneira fugaz ao decorrer de mais de duas décadas?
Assim aconteceu com grande parte da cultura local - curiosamente nestes poucos mais de 20 anos que esta terra é conhecida como Estado de Rondônia -, ainda mais, quando esta cultura se tratava de movimentos jovens que, costumeiramente, eram encarados como surto de uma juventude sem princípios, pagã, libertina e promíscua - semelhantemente como Bloom² classificara a juventude americana no final da década de 80.
Através dos movimentos jovens - em especial o Movimento das bandas de Rock -, Porto Velho, assim como o Estado de Rondônia, não percebeu as diversas manifestações que se processavam entre estas tribos urbanas, até porque estas estavam na condição de marginais, contudo, pouco a pouco este movimento vivenciou um processo de organização.
Grande parte destes movimentos tinham influências visíveis dos maneirismos da década de 70, bem como do Punk. Foi assim que o Rock tornou-se ferramenta de interferência sócio-política de um bom número de jovens deste Estado.
Diferentemente dos processos de aculturação e cópia dos modismos influenciado pela mídia - na década de 80 devido à expansão da televisão e na década de 90 devido o maior acesso aos computadores e a internet -, o Rock, este ritmo estrangeiro, foi usado como amplificador das angústias, problemáticas e inseguranças da juventude rondoniense.
Esquecidos pelo tempo, bandas e músicas se somaram aos perdidos, lembrados apenas por alguns dos saudosos guerreiros que tiveram a oportunidade de presenciar, assistir e ouvir, as mais diversas apresentações de bandas nestes muitos anos.
As bandas, em sua maioria, nasceram de influências da música Punk - assim como o movimento de bandas de Rock em Brasília nos anos 80, que deu como fruto bandas como: Plebe Rude, Legião Urbana, Capital Inicial, entre outras -, outras ainda foram muito influenciadas pelo psicodelismo e o virtuosismo de bandas como The Doors e Pink Floyd: é o caso da banda Nômades.
Essas manifestações não se restringem a Porto Velho, basta observar os trabalhos de bandas como Os Químicos - da cidade de Ariquemes -, que em músicas como “Força Militar” tratam de criticas a obrigatoriedade do serviço militar, tema muito abordado pelos movimentos punks.
A banda Merda Seca na música “Deus = o capital”, traça um paralelo entre acumulação, usurpação monetária do povo pela igreja (sejam protestantes ou não), crítica a sociedade ocidental (cristã, puritana e capitalista), e ainda faz uma crítica incisiva a idéia de “deus” que mantemos.
“Teatro no Vinil” é uma música da banda Detroid - extinta banda portovelhense liderada pelo lendário Jony “o desordeiro”: a música trata dos conflitos entre tribos urbanas - Punks e Headbengers -, é uma narrativa de umas das lendas urbanas de Porto Velho (ou de um dos mais interessantes factóides locais): a história da Headbenger Sam, segundo as falácias locais, esta última teria manipulado punks e headbengers, inclusive promovendo a pacificação temporária entre estas tribos - conhecidas por não conviverem muito bem. O episódio termina com Sam - após ser desmoralizada entre Punks e Headbengers - incendiando seu apartamento e colocando fogo em seu próprio corpo. Sam não morreu, contudo, ninguém sabe do seu paradeiro, comenta-se que a mesma teria se mudado para o Amapá.
A banda Orbe, uma das bandas mais lembradas da juventude que freqüentava a extinta Oficina do Rock³, transmitia em suas músicas toda a geração que foi influenciada pelo mal estar, presente na juventude dos Estados Unidos da América, evidente no final da década de 80 - identificado por Bloom, e liderado pelas bandas Grunge, que entre seus principais precursores estão bandas como Nirvana - 4 -, Melvins e Pearl Jam.
BANDA RÁDIO AO VIVO (2004)
Ainda sobre as influências do Grunge e toda acidez do Punk, a banda Rádio ao Vivo - vindo a existir inicialmente como banda Neófitos -, sintetizou na música “Mansão do Arão” uma boa quantidade de niilismo e desmazelo. A história do morador de rua Arão é a metáfora de um ataque a diversos valores de nossa sociedade: escola, status quo, acumulação, puritanismo, comodismo e indiferença. A música nasce a partir de uma situação curiosa: Arão após ser perguntado sobre onde ficava sua casa, apontou para a praça e disse: “olha ali a minha mansão”.
A música ainda aborda em seu conteúdo diferenças sociais, tribos urbanas e a juventude marginalizada que, até então, tinha como principal ponto de encontro em Porto Velho, a Praça Aluízio Ferreira - conhecida popularmente como a “Praça do Half” - 5 -.
A Coveiros é, sem dúvida alguma, uma das bandas mais conhecidas do Estado de Rondônia. A banda possui um bom número de músicas que marcaram Porto Velho. Considero “Medo e Esperança” uma das melhores músicas da banda. A música exprime uma turbulenta afronta ao ser humano acomodado, é digna de ser classificada como a síntese de uma re-volta. A música é agressiva, mas muito profunda - envolta pela guitarra mais do que pesada de Hélio, a garganta destruidora de Giovani, a bateria esquizofrênica do Del e o Baixo do Yuri-, lança uma sensação de desespero, algo próximo da sensação que qualquer um teria caso estivesse na Faixa de Gaza vestido com o uniforme do Hesbolá, e ainda, sendo obrigado a ter que segurar uma bandeira de Israel. Dá para imaginar?
FANZINE ORGANIZADO PELA BANDA D.H.C
Já que falamos de Israel e da Faixa de Gaza, é bom lembrar que as músicas das bandas locais, costumeiramente, se responsabilizaram por traduzir as emoções e as opiniões da juventude local a respeito de temas dos mais complexos. Foi assim com a banda DHC, na música "Oriente Médio": a música expõe o ambiente de guerras vivido no inicio da década de 90, em especial, os conflitos da Guerra do Golfo e os ataques constantes a Beirute. As músicas da D.H.C já tratavam de temas super atuais como ambientalismo e críticas a proliferação da energia nuclear.
Interpretada pela DHC, a música “Porto Velho Caos” curiosamente foi composta por um grupo de amigos de Ariquemes e já destrinchava, em notas e versos, toda a acidez e contradições sociais advindas como soldo da atividade garimpeira em Porto Velho.
A banda Scrooff, sem abrir mão da melodia, conseguiu juntar em uma boa música uma ótima crítica: “Estado-Razão” mostra que é possível sim, juntar melodias a críticas sociais recheadas de argumentos punks.
Por fim, a banda vilhenense - Enmou -, na música “Vou matar cowboy”, identifica de maneira singular as diferenças e contradições presentes num estado construído a partir de uma miscelânea de culturas: o confronto entre o urbano marginalizado - punk -, e o modismo rural configurado como o filho snobe do grande proprietário rural - no caso o cowboy -, mostram as diferenças e os contrastes de um estado em formação, além das diferenças entre o urbano e o rural, este último sendo a corrente majoritária local.
Enfim, como negar as diversas influências do movimento rock em Rondônia, ao passo que, este movimento foi catalisador de diversas características que colaboraram para o que somos hoje? Este mesmo movimento enfrentou o fim da ditadura, quando, para promover qualquer evento, a banda Nômades era obrigada a enviar cópias das músicas para o Departamento Federal de Censura em Rondônia, para, após uma análise do teor das letras, conseguir liberação para expor suas músicas nos eventos.
A banda Nômades ainda encabeçou o “Projeto Espaço Aberto” - projeto que acontecia quinzenalmente na Praça das Três caixas d’águas ao decorrer do ano de 1987 -, conseguindo agregar em um evento 10.000 pessoas. Era a movimentação de figuras e bandas que possibilitavam as manifestações de uma cena.
O Rock, ritmo estadunidense, se perdia nas notas de diversas bandas, e estas se tornavam original ao passo que falavam de seu cotidiano, mas sem apartar das questões do mundo por aí à fora. Isso é visível seja num evento da banda Nômades na escadaria da Unir Centro, em 1987 - alguns acreditam que o primeiro evento realizado no local-, um protesto contra os diversos problemas de fornecimento de energia elétrica na cidade de Porto Velho, o que acabou por dar nome ao evento de “Faz escuro, mas eu canto”. Ou ainda, nos versos de protesto da D.H.C que, de certa forma, inseriam os jovens que ouviam a banda em debates como Guerra, Imperialismo, não-submissão e autonomia.
Versos de protesto contra uma “democracia onde o que vale é obrigar” como dizia um trecho da música “Força Militar” da banda Os Químicos. Os mesmos protestos vertidos em mensagens metafóricas da música “Mansão do Arão” da banda Rádio ao Vivo - versos repletos de anarquismo, repletos do “do it yourself”, ou o faça você mesmo, versos figurantes do caos que como teoria possuem como fim o mesmo lugar: um eterno retorno onde a destruição é uma constante criação.
E quem negaria que “Deus = o capital”, da banda Merda Seca, não é uma feliz análise sociológica, uma música que passeia pelo materialismo-histórico-dialético de Marx e faz ponte com a análise de Max Weber sobre o protestantismo como o cerne fundamental do espírito capitalista.
Isso é só um pouco do que construímos em mais de duas décadas de Rock em Rondônia, e muito não foi falado, não foi analisado, não foi visto nem ouvido.
Construímos algo original, regional, que não é produto da aculturação, mas sim, de uma antropofagia cultural - como a de Oswald de Andrade - 6 -, onde cultura é vista não como algo que vem de fora, mas que é produzido a partir da prática e análise do cotidiano em que vivemos inter-agindo, inter-ferindo.
NOTAS
1 - “Recado para baby blues” é o título de uma música da banda Nômades, a primeira banda de rock a produzir música própria em Porto Velho. Escolhi esse nome para o artigo, pelo simples motivo do nome ser consoante com o objetivo principal desta publicação: a promoção e a divulgação de informações a respeito de bandas de Rock locais.
2 -
BLOOM, Alan. “The Closing of the American Mind” - “O estreitamento da mentalidade Americana”: Bloom em sua publicação de 1988 alega que a cultura popular, em especial o Rock, causou atrofia do vigor e da inteligência da juventude americana. Entre outras considerações Bloom fala do declínio moral e intelectual, encara como única causa, o Rock; teme o espírito desafiador as autoridades que este ritmo implantou nos jovens a partir da década de 60. O livro é uma grande coleção de considerações preconceituosas, puritanas e autoritárias, bem ao estilo do Gentleman - as características do colonizador da “Nova Inglaterra”. Os pontos positivos estão na qualificação do Rock como movimento, e que, caracterizado como cultura popular, é ameaçador as bases das instituições intocáveis da terra: a igreja e o estado.
3 - Durante mais de 20 anos a Oficina do Rock foi o principal ponto de encontro do pessoal do Rock. Infelizmente (ou felizmente) a Oficina foi transformada em um estacionamento no início do ano de 2005.
4 -
Bloom ainda foi motivo de inspiração para um dos principais clássicos do Nirvana: a música “In Bloom”.
5 -
O Half foi recentemente destruído pela Prefeitura Municipal de Porto Velho por motivos de reestruturação e reforma da Praça. A Praça Aluízio Ferreira também era conhecida (ou ainda é... sei lá) como a “Maldita”. 6 -
Um dos grandes nomes da Semana de Arte Moderna de 1922.